Até que eu me divirto!

mas que deixei de acreditar, isso eu deixei!

3.19.2005

A Neurótica

Nos tempos de colégio, ela chagou no melhor estilo “bicho-do-mato”. Figurinha acanhada, encolhida, com ar amedrontado.
Era monossilábica, mas só falava quando era questionada. Era dada apenas aos “sins” e aos “nãos”, ao rosto vermelho e aos olhares desviados para o chão. E rea feia que dava pena. Na verdade, esquisita. Caruda, aparelho nos dentes, óculos grandes e cabelos mal penteados.
Com o tempo passando, e o convívio intenso, ela começou a se soltar: aprendeu a rir feito gente, e a falar algumas palavras, a levantar a cabeça de vez em quando. Mas ainda era figurante.
Arrumou uma amiga. Uma garota engajada, faladora, mas arrogante que só.
Agora ela aparecia um pouco mais, porém, sempre na aba da outra.
Foi então que começou a falar de sua vida. Como, à princípio, ninguém estava interessado nesse assunto, surgiu na história um irmão mais novo, de quem ela deveria cuidar. Surgiram também as pilhas de roupas para lavar, e as louças, e os cômodos a varrer. Falava de maltratos, da falta de amor de seus pais para consigo. Seria mesmo uma coitada.
História comovente. Ganhou mais duas amigas.
Passaram-se meses. Ela aprendeu a pentear os cabelos.
Passaram-se meses. Ela descobriu as lentes de contato.
Alguns anos depois, certas coisas eram diferentes. Seu ar de miserável serviu para prender a atenção de outras pessoas. Ela também aprendeu a formular frases completas. E estava menos feia (mas lembrem-se: milagres não acontecem.). As pessoas também haviam se desinteressado por suas histórias, à medida em que ela foi se entrosando. Já não havia mais necessidade para coisas tão improváveis.
Mas chegou a formatura. E todos para suas vidas. Ninguém, exceto a arrogante e as outras duas amigas, quis saber mais sobre ela.
Se sentiu só outra vez, e foi então que arranjou um namorado. O típico bruto, com mania de perseguição, para quem ninguém presta. E logo em seguida confessou para a amiga arrogante: “Ele me agride.” A outra, é claro, não se permitiu calar. Saiu por aí falando: “Ela apanha.”
O namorado cobrou, a feiosa desmentiu, a arrogante se irritou e a amizade acabou.
Ultimamente, ela tem falado em telefonemas ameaçadores. Amigos de uma ex-namorada de seu namorado machão. Não obstante, diz que uma de suas antigas amigas, uma daquelas duas dos tempos do colégio, foi quem divulgou o número de seu telefone.
Ela é mesmo assim. Só precisa de atenção.

[14 de março de 2005]

3.14.2005

Carta pro ex-chefe

E aí, bacana? Tudo certinho por aí?
Por aqui, nem tudo. Mas você sabe: até que eu me divirto.
Como andam as coisas? A casa ainda tá de pé, não? Eu falei, rapaz: serviço bem feito. Primeira linha!
E o seu filho, o que queria ser doutor? Deve estar quase formado, não? Olha chefe, eu gostava bastante dele. Torcia mesmo. Me divertia ver o moleque estudando, dando porrada na cabeça até gritar “Ah! Era só isso?!”. Espero que ele esteja bem.
Por falar em família, bacana, tá lembrado que naquele tempo minha patroa tava pra parir, né? Um meninão, cara! Olha, tá bonito mesmo!
Não pude dar pra minha família uma vida cheia de luxo, ou alguma coisa um pouco mais próxima da vida aí na sua casa. Mas também nunca deixei faltar nada lá no barraco: comida, roupa, e até uns passeios nos fins de semana. Mesmo assim, a patroa resolveu sair fora. Pra isso eu nem liguei, mas o chato é que ela levou meu garoto.
Eu continuo por aí, na batalha. São horas pra lá, horas pra cá, horas no trampo. É pelo moleque que eu ainda tenho as unhas destruídas, a mão rachada, as costas doloridas. E nem reclamo, porque quero ver o garoto numa melhor do que eu. Quero que ele cresça como criança, podendo brincar, estudando. Um dia, quem sabe, quero vê-lo doutor, igual ao que seu filho dizia que ia ser.
Passo o mês trabalhando, sem parar. Pego quase todo meu trocado e entrego pra mãe do filhote.
Ontem teve um cara de terno aqui no meu barraco. Chegou num carro meio bacana, não tanto quanto aqueles seus, mas era bacana. Saiu, bateu na porta, me deu um papel e disse que eu tinha que assinar. Fiz meu rabisco, porque isso eu aprendi quando era novo. Daí ele disse que eu tenho que ir ao juiz sei lá que dia. Parece que meu trocado não é suficiente pra criar o garoto. A mãe reclamou e o cara de terno disse que eu posso até ser preso! É mole, chefe? Eu, preso? O que é que eu posso fazer? O que entrego na mão da mulher é tudo o que me sobra, tirando uma partezinha pro arroz com feijão, um ovo frito aqui e ali, uma cerveja no sábado e só.
Tô pensado em vender minha tevê. Isso não serve pra muita coisa mesmo, ainda mais com essa antenazinha ruim que eu tenho aqui. Só não sei se vai satisfazer o cara de terno.
Tenho o domingo livre também. Vou ver se arrumo um trampo pro domingo, só até umas quatro da tarde, que é pra chegar em casa antes das sete,e dormir um pouco antes de levantar as quatro da manhã da segunda.
Olha, meu caro, acho que vou ficar por aqui mesmo. Não vou ficar falando dos meus problemas não, porque como disse, até que me divirto.
Se qualquer dia você tiver alguma coisa pra arrumar aí, pode me chamar, bacana.
Sabe que eu sou bom no que faço, né? Um puxadinho, uma garagem, uma torneira pingando, uma mansão pra construir... pode chamar, que o serviço aqui é de primeira.


[Escrito em 8 de março de 2005]